Cansadas de viverem sozinhas, de vez em quando as letras resolvem se misturar na cabeça de algumas pessoas e, juntas, formam palavras, que formam textos que, dependendo do momento e da imaginação de cada um, tornam-se contos, ensaios, críticas ou até mesmo incríveis historinhas infantis.
Daí, surgem misturas fantásticas para saciar a nossa fome de beleza e nos levar a um mundo encantado que só a nossa imaginação, unida à imaginação de quem escreve pode desvendar.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

DE VOLTA AOS TEMPOS DE BARBÁRIE: AQUI VAMOS NÓS.

por Rejane Menezes




Não sei se estarrecida seria a palavra para definir como me senti no domingo, 05 de novembro, ao ver as notícias sobre o comportamento de algumas pessoas nas portas de locais de realização do exame do ENEM.

Seria só eu ou muita gente também ficou horrorizada e indignada com o comportamento de pessoas que, em diversas cidades do país, foram se divertir com a agonia de quem se atrasou e não conseguiu entrar?

Confesso que minha cabeça deu um nó ao ler que as pessoas saíram de suas casas, em uma manhã de domingo, para fazer piquenique, tomar cerveja, se divertir, à custa de quem não conseguiu chegar a tempo para prestar o exame. Que país é essa minha gente, onde o sofrimento de uns é motivo de badalação para outros?

É com muita preocupação que venho acompanhando as notícias do retrocesso do Brasil em todas as áreas: social, ambiental, econômica, religiosa e humana, com a exacerbação dos preconceitos e da intolerância. A divisão de classes está cada vez mais acentuada e acirrada. A homofobia vem fazendo vítimas de violência, inclusive física, assim como a intolerância religiosa, com o fanatismo e o fundamentalismo se espalhando e indo na contramão do que qualquer religião prega: a justiça.

E agora, do nada, sem uma razão sequer, nos deparamos com camarotes distribuindo cerveja para os retardatários, com corredores de pessoas gritando e até mesmo atrapalhando quem chega desesperado para conseguir encontrar o portão aberto.

O que é isso minha gente? Será que as pessoas não conseguem mais racionar como animais racionais? A racionalidade, a única coisa que nos diferencia dos outros animais, estaria atrofiando? Será que o ciclo de evolução se fechou e agora estamos no processo inverso?
Fico me perguntando o que leva um grupo de jovens a “assistir” ao atraso dos candidatos ao ENEM, tomando cerveja gelada e ainda a comentar que “esse ano foi fraco. Mas valeu o rolê”.

Se esses jovens são uma representação do futuro do Brasil, sinto informar que não haverá futuro.

Sempre fui uma pessoa otimista. Sempre me orgulhei de ser brasileira e, sobretudo, de ser nordestina. Hoje me resta apenas o orgulho de ser nordestina, porque em ser brasileira, só sinto vergonha.

Não consigo entender a diversão em ver pessoas correndo para conseguir acessar os portões e fazer uma prova cujo resultado poderá mudar totalmente sua vida.

Quantos sonhos foram destruídos ontem ou, pelo menos, adiados, para os que encontraram os portões dos locais de prova fechados? Quantos planos foram por água abaixo, diante da impossibilidade de tentar acesso ás universidades públicas?

Quantas daquelas pessoas que chegaram atrasadas já não tentaram entrar na faculdade mais de uma vez?

Para muitos dos que se divertiam com a desgraça dos outros, entrar na faculdade não foi ou não será um problema. Afinal, se não entrar nas públicas, seus pais podem pagar. Mas e quem não pode pagar por uma universidade privada? Não vivemos mais em tempos em que o financiamento estudantil era uma realidade plausível e que ajudou a muitos estudantes pobres a conquistarem seus diplomas. Isso é passado. Aos menos abastados a única opção é a universidade pública. E perder o exame do ENEM não tem nada de engraçado.

O exame do ENEM não é um espetáculo, um show, uma apresentação, que deva mobilizar público, seja para torcer, como alguns disseram estar fazendo, seja para assistir ou, pior ainda, atrapalhar, como pudemos ver em matérias na mídia.

Os motivos de quem chegou atrasado são inúmeros e cada um tem o seu. E, em nenhum caso, com certeza, diz respeito a quem estava aglomerado nas imediações dos locais de prova. E é aí que a realidade atual do país mais me assusta: a intromissão na vida pessoal de estranhos está se tornando uma constante, na verdade, eu diria, está deixando de ser um desvio de conduta, antes criticado, para se tornar uma prática, aplaudida e noticiada, por algumas mídias, com bom humor e descontração.

Não minha gente, nunca essas práticas de invasão na vida dos outros pode ser encarada como uma notícia leve, engraçada ou bem humorada.

Bater em uma mãe e uma filha ou em dois irmãos, por achar que são homossexuais, tem que ser motivo de indignação e de combate. É uma violência e um desrespeito à individualidade de cada ser humano. Se uma pessoa é adepta de uma religião de matriz Afro, ela tem que ser respeitada por pessoas de outras religiões, porque respeito e acolhimento é um princípio básico de qualquer religião.

Estão nos tirando todos os direitos:à educação, à saúde, à aposentadoria, à moradia, trabalhistas, ambientais, de opção sexual e religiosa. Estão destruindo a nossa dignidade. E, ao vermos todo esse comportamento absurdo em relação aos que perderam a hora do exame do ENEM, temos a sensação de que as pessoas estavam comemorando o infortúnio, trazendo para fora dos muros da prova o clima de competição e animosidade que acreditam que deva existir entre os competidores.

Cada um que chegar atrasado é um competidor a menos e, por consequência, uma chance a mais para quem está fazendo a prova. Se for esse o raciocínio, se para quem chegou a tempo, quanto menos pessoas fizerem o exame, melhores as chances, mais se confirma o meu prognóstico de que não há um futuro para esse país.

Por isso é preciso despertar desse torpor, desse caminhar automático, sem olhar para os lados e nem para trás. É preciso despertar desse pesadelo que estamos vivendo nos últimos tempos e questionarmos as nossas atitudes, as nossas supostas convicções.

Não é divertido tomar cerveja enquanto as pessoas estão desesperadas porque perderam a hora do exame. Isso é sintoma de uma doença nacional grave,  muito grave: a desesperança. É a sinalização de uma desilusão profunda, de um sentimento de não ter por que lutar.

Por isso, depois de vermos uma parte de nossa população ir às ruas e ter uma atitude como essa, de transformar a desgraça alheia em uma fonte de diversão e laser, acredito que, como povo, chegamos ao fundo do poço. E, a partir de agora, qual será a fonte de diversão? Sentarmos em uma de nossas magníficas e caríssimas arenas e assistirmos, extasiados aos leões devorarem quem não consegue pagar o aluguel? Ou batermos palmas e incentivarmos as lutas corporais entre candidatos a uma vaga de emprego?

É isso mesmo produção? É isso que queremos para o futuro de nossos descendentes? Selvageria e barbárie? Violência como diversão?
Depois do que ocorreu nesse domingo, 05 de novembro, penso que  temos o dever cívico de nos desacomodarmos e começarmos a tecer as cordas que nos ajudarão a subir pelas paredes desse poço, enquanto ainda estamos no fundo.
Se não fizermos nada, haverá grandes possibilidades de, até o ano que vem, no próximo exame do ENEM não estarmos mais no fundo poço e sim de estarmos caindo em um poço sem fundo.

A escolha é nossa. Ainda há tempo de subirmos em busca da nossa dignidade roubada, enquanto ela ainda não está totalmente perdida.


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