Cansadas de viverem sozinhas, de vez em quando as letras resolvem se misturar na cabeça de algumas pessoas e, juntas, formam palavras, que formam textos que, dependendo do momento e da imaginação de cada um, tornam-se contos, ensaios, críticas ou até mesmo incríveis historinhas infantis.
Daí, surgem misturas fantásticas para saciar a nossa fome de beleza e nos levar a um mundo encantado que só a nossa imaginação, unida à imaginação de quem escreve pode desvendar.

sábado, 20 de junho de 2020

RETRATO DO ARTISTA QUANDO ADULTO


Homenagem a Chico Buarque em seus 76 anos!



por Frei Betto

Poesia em forma de pessoa, Chico Buarque encarna os requisitos da obra poética: emoção, economia de palavras, agudo senso estético. Dentro dele faz muito barulho. Mas quem o conhece sabe que ele é quase silêncio, disfarçado de tímido, como quem observa o mundo espantado com o milagre da vida.

       Entre amigos, o vozeirão grave atropela as sílabas, como se temesse a gagueira inexistente, e Chico fala de tudo e de todos, sem poupar irreverência. Entre estranhos, os olhos verdes brilham enigmáticos, luzeiros inefáveis, a boca tapa a fervura d’alma, o sorriso, entre maroto e contido, exibe as teclas de piano entre o sim e o não.

       Diante do olhar canibal dos fãs, Chico quase olha para trás, convencido de que não é com ele. Dane-se a cabeça idolatrada, mas ele se sabe de barro e sopro, exilado dessa imagem que a admiração alheia, avara, projeta na imaginação fantasiosa de quem, um dia, numa frase musical, viu-se arrebatado e identificado, no amor ou na dor, no sentimento indelével que o poeta captou, fraseou e cantou.
       Francisco Buarque de Hollanda teve o privilégio de fazer 20 anos nos anos de 1960. Seresteiro precoce, cercado de livros e cordas na rua Buri, em São Paulo, trocou a régua e o compasso, da Faculdade de Arquitetura, pela toada intimista da Bossa Nova, trazida ao lar pelo cunhado João Gilberto. Todavia, neste carioca branco de alma negra, o morro impregnou-se mais forte que a praia. Desconfio de que, no fundo, Chico lamenta não ter nascido na Estação Primeira de Mangueira, com todo o talento que Deus pôs nos pés e na magia dos brasileiros que fazem do futebol a arte de dançar em torno de uma bola.

       Em 1964, a ditadura ameaçou os padres dominicanos de expulsão do Brasil. Prejudicados pela conjuntura política, apelamos aos amigos. No teatro Paramount, em São Paulo, promovemos o espetáculo beneficente Avanço, no qual Chico Buarque, cantor de plateias estudantis, fez sua estreia para o grande público. Havia também uns baianos muito novos, o irmão de Bethânia do Carcará, um ex-bancário chamado Caetano, todo timidez, e um amigo dele, ex-funcionário da Gessy-Lever, um tal de Gilberto Gil…

       Nasciam ali os trovadores que iriam desencantar a ditadura, embora forçados ao exílio e submetidos à censura. Deram-se as mãos na Passeata dos 100 Mil, em torno da igreja da Candelária, no Rio e, mais tarde, Roda Viva, de Chico, comprovou que teatro é espelho. Mirem-se nas mulheres de Atenas. Rostos macabros não gostaram de se ver refletidos. Quebraram o espelho, assim como os algozes de Antonio Maria acreditavam que jornalistas escrevem com as mãos…

       Chico foi para a Europa, no autoexílio inevitável. Fez espetáculos em favor dos exilados e deu às suas letras um tom mais profético que romântico. Aqui é o seu lugar e, de retorno ao Brasil, ousou quebrar o cálice e fazer ouvir a sua voz, convencido de que amanhã será outro dia. Com Vinicius, foi para São Bernardo do Campo apoiar os metalúrgicos que, liderados por Luiz Inácio Lula da Silva, teimavam em sonhar um Brasil diferente.

       Filho de famílias que há 100 anos conspiram em favor da democracia, Chico não é um militante, desses que exibem carteirinha de partido e atestado de tendência ideológica. Nem “militonto”, que pula de palco em palco acreditando que, com o seu violão, vai salvar a pátria e acabar com a fome no Brasil. Mas é um cidadão da utopia, impregnado da virtude da indignação. Esteta, tem a medida das coisas. Nessa arenga nacional, conhece exatamente o seu canto e, quando faz noite, sua voz suave, de timbre acentuado e agudo, quase feminino, traduz paixões e feridas, rupturas e arroubos. Porque canta o que sentimos sem encontrarmos palavras, expressão agônica de nossos espíritos atordoados ou enamorados. E tece em letras os estorvos que impedem a vida de ser a arte de sonhar acordado.

       Chico é ele e suas mulheres – Silvia, Helena e Luiza, e as netas e os netos.  Ele é feito de detalhes – o que, aliás, importa em nossas vidas. Sua casa é um espaço democrático, onde candidatos, desde que progressistas, expõem suas ideias e acolhem críticas e sugestões dos artistas. Na Gávea, vi seu pai fazer 76 anos e cantar Sassaricando em latim.

       Para Chico, o tempo não passou na janela. Ele se fez geração. Na arte e no palco, transmuta-se em Carolina, numa dessas mulheres que só dizem sim, seresteiro, poeta e cantador, olhos nos olhos, ele se chama Mané e dobra a Carioca, sobe a Frei Caneca e se manda pra Tijuca na contramão. Nunca esteve à toa na vida e, cantando coisas de amor, alia-se à esperança dessa gente sofrida que quer despedir-se da dor.

       Larápio rastaquera, pai paulista, avô pernambucano, bisavô mineiro e tataravô baiano, ele gostaria de ser o mais exímio jogador de sinuca. Falso cantor, Chico é apenas um artista brasileiro.

       Saibam que poetas, como os cegos, podem ver na escuridão. Nessas tortuosas trilhas, sofre de pânico cênico, admira Fidel Castro e, viciado em futebol, jamais se “americanizou”. Quando no Rio, cidade submersa, os escafandristas e sábios decifrarem o eco de suas cantigas, amores serão sempre amáveis e cantores, duráveis. Porque a alma brasileira vai reter Chico para sempre.

       Se do barro o Criador fez alguém com tanto amor, foi Chico.

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sexta-feira, 8 de maio de 2020

MUDANÇA DE ENDEREÇO

Olá pessoal

O blog Mistura de Letras está mudando de endereço e migrando para a plataforma WordPress. 

Vamos dar um tempinho, enquanto comunicamos a todo mundo a mudança e, por enquanto estaremos nos dois endereços, mas, em breve, ficaremos usando apenas o novo. 

Nosso novo endereço é:

www.misturadeletrasblog.wordpress.com.

Nos vemos por lá

quinta-feira, 26 de março de 2020

AMOR EM TEMPOS DE CORONA ????




Corona já foi sinônimo de “banho de alegria em tanta gente”. Também nos lembra o ator Lauro Corona, que morreu muito jovem, mas que marcou uma época. E, mais recentemente, virou  nome de cerveja.

A crise mundial provocada pelo Corona vírus é devastadora. Além de sua disseminação ser em progressão geométrica, ele traz uma consequência que vai além dos males físicos: a solidão.

O isolamento que se faz necessário, imprescindível, cortou, sabe-se lá por quanto tempo, as interações sociais, tão importantes na vida do ser humano.

E, por outro lado, força uma convivência mais frequente entre as famílias, pessoas que moram na mesma casa, mas que, por força dos horários de trabalho, escola, faculdade, estágios, atividades físicas e coisas afins, nunca se viram obrigados a estranha coisa que estão experimentando agora: conviver.
Para muitas famílias, nem nos finais de semana essa tal de convivência acontece. Mesmo onde têm crianças, a convivência nem sempre acontece de maneira frequente.

A rotina familiar mudou. Em lugar de saírem para trabalhar ou qualquer outra atividade e deixarem os filhos por conta de babás, tem muita gente chiando porque está sendo obrigada a dar atenção aos filhos e o que é pior: cuidar deles.

Imaginem as famílias onde os filhos são cuidados por enfermeiras ou babás desde que saem da maternidade, pais e mães que nunca trocaram uma fralda ou prepararam um leite, porque sempre tiveram babás em tempo integral?
Os problemas causados pelo isolamento são muitos e alguns, embora normais no dia a dia de qualquer pai ou mãe, podem ser o apocalipse para outros. Penso até que a solução para algumas famílias tenha sido proibir suas babás e domésticas de irem para suas casas e ficarem trabalhando, se não poderiam perder seus empregos.

Agora tem uma coisa que não tem nada a ver com o vírus: a hipocrisia. Acabei de assistir a um vídeo de uma pessoa, se dizendo médico há 30 anos e que estava muito preocupado com os pobres. E daí fala mal dos presidentes do senado e da câmara, do Congresso de uma maneira geral, e defende que tem que afrouxar o isolamento porque, se não, as pessoas pobres vão morrer de fome. Ninguém está pensando nelas insistindo nesse isolamento austero. Porque os ricos podem ir ao supermercado, comprar dois mil reais e ficar em casa, tranquilo, se precisar de hospital, vai a um particular. Mas os pobres estão presos em casa, com a comida acabando e vão fazer o que, quando a comida acabar e a mercearia da esquina não tiver mais nada também? E, a solução pra ele é afrouxar o isolamento, essas pessoas voltarem ao trabalho, evitar que a economia entre em crise e daí não morrerão de fome. E chega ao cinismo de dizer que podem até morrer alguns por causa da gripe. Mas morrerão muito mais de fome, se não afrouxar o isolamento e a economia não voltar a girar.

Não conheço a criatura que falou essas coisas absurdas, mas, se conhecesse, com certeza perguntaria a ele, que está tão preocupados com os pobres, por que não sugere que os ricos doem o correspondente a uma ou duas viagens anuais para instituições que estão ajudando os mais necessitados?

Por que esse médico tão preocupado com a fome do povo, não faz um apelo aos mais ricos para doarem o que gastam com seus uísques 50 anos, a gasolina do barco, do avião, para a compra de equipamentos hospitalares, produtos de higiene, por exemplo, para ajudar aos hospitais públicos?

Uma outra sugestão que esse médico poderia ter dado era que os donos das grandes empresas não cortassem os salários dos empregados. Que as pequenas empresas que, não tenham suporte para aguentar a crise, negociem com seus empregados, uma forma de pagar os salários, parcelados, uma parte agora, outra mais adiante. Que o governo ajude as pequenas e microempresas e não as grandes corporações.

É muito interessante ver que as pessoas sempre fazem sugestões para sacrificar os mais pobres. Nunca os mais ricos.

Ter o descaramento de, como médico, conhecendo todas as recomendações, recomendar o afrouxamento do isolamento, para movimentar e economia, é de uma crueldade tão grande que a gente não entende como uma pessoa que estudou para salvar vidas, propõe essa sentença de morte.

O mundo está assistindo, praticamente impotente, a um extermínio de uma parte da população, por um vírus microscópico, resistente e, para o qual, não existe vacina e os tratamentos são experimentais ou paliativos.

Li, recentemente, um excelente artigo de Fernanda Torres, “Ninguém sairá o mesmo dessa quarentena”

Em seu artigo ela comenta sobre o livro que leu, da historiadora Barbara Tuchman, sobre a calamidade no século XIV. E comenta sobre as procissões de penitentes em meio à peste negra, que dizimou dois terços da população europeia.

Segundo Fernanda a autora descreve o caos daquela época com realismo e minúcia desoladora. Os tementes que ainda estavam sadios, iam se somando às romarias, que saiam às ruas para pedir a Deus proteção contra a doença. Ficavam doentes durante o percurso e o final eram as covas rasas. Só depois que o número de mortos foi se multiplicando que os dirigentes religiosos, finalmente, suspenderam as missas, as procissões e as aglomerações.

Sete séculos depois a história se repete, não por parte da Igreja Católica que, pelo menos aqui no Brasil, está agindo de maneira lúcida e apoia as medidas tomadas pelos Estados. Mas por outras denominações religiosas que, preocupadas, como o governo federal, com a queda de suas finanças, insistem em manter os cultos e, criminosamente, dizem aos fiéis que ali os doentes se curam e os sãos não contraem doenças.

Mas não sejamos injustos. Várias empresas, em âmbito mundial e nacional, têm contribuído para a luta contra o Corona Vírus. Empresas de TV por assinatura liberam canais pagos, e-books são liberados gratuitamente, pessoas criam vídeos os mais diversos para ajudar a entreter as crianças, cursos on line ficam grátis por esse período, empresários se juntam para comprar equipamentos, outros suspendem a fabricação de bebidas para fabricar álcool 70% ou álcool em gel. O tal médico deveria citar isso em seu vídeo e apelar para que mais empresas tomem atitudes como essa.

Mas ele preferiu ficar ao lado de pessoas como o dono de uma famosa rede de restaurantes que chegou a dizer que 5 a 7 mil mortes não são nada diante do colapso da economia.

E, claro, que não poderia deixar de falar sobre a ação do  Armazém do Campo, o MST, a Arquidiocese de Olinda e Recife, e uma dezena de sindicatos, ONGs e outras instituições, que se juntaram para cuidar do pessoal em situação de rua, fornecendo café da manhã, jantar e banho. Além de, com ajuda das Mulheres de Brasília Teimosa e das Mulheres do polo têxtil do agreste, confeccionar máscaras de proteção para distribuir com o pessoal.

Ações assim precisam de nosso apoio, seja divulgando, seja indo para lá para ajudar na preparação das comidas (quem não está no grupo de risco) e na distribuição, seja contribuindo, financeiramente, para que continuem.

Claro que, se não somos milionários, mas o que pudermos contribuir, será importante.

Coloco abaixo as informações da conta, para contribuição.

Mesmo em casa, no isolamento, podemos contribuir para ajudar aos mais necessitados e também a movimentar a tal da economia, comprando via whatsapp no Armazém do Campo e nos pequenos empresários que estão entregando em domicílio.

Em casa, se protegendo e protegendo às outras pessoas, podemos continuar a não largar a mão de ninguém e a viver o amor, sempre, mesmo em tempos de Corona.





Entrem na página do Armazém do Campo, no Instagran e assistam ao vídeo do primeiro dia de entrega das marmitas às pessoas em situação de rua.

Clique aqui