Cansadas de viverem sozinhas, de vez em quando as letras resolvem se misturar na cabeça de algumas pessoas e, juntas, formam palavras, que formam textos que, dependendo do momento e da imaginação de cada um, tornam-se contos, ensaios, críticas ou até mesmo incríveis historinhas infantis.
Daí, surgem misturas fantásticas para saciar a nossa fome de beleza e nos levar a um mundo encantado que só a nossa imaginação, unida à imaginação de quem escreve pode desvendar.

domingo, 26 de maio de 2019

GÊNIO SIM POR QUE NÃO OU ELE VINHA SEM MUITA CONVERSA - 21 ANOS DEPOIS




Ele compunha, tocava e cantava e falava de mar, de lua, de trem e de amores, perdidos, achados, amados enfim.

Seu olhar, claro como o dia, sorria tímido, como tímido era o sorriso que se esboçava em sua boca ávida por anunciar um novo dia chegando, querendo acreditar que ele iria raiar, só porque sua cantiga anunciou.

Foi assim que, lá pelos idos de 1966, assisti deslumbrada, no alto dos meus 11 anos, a um jovem meio sem jeito, encantar a todos que ouviam a banda passar.


 Olhos grudados na TV, tão em preto e branco quanto o retrato que o maestro soberano ajudaria a colecionar um pouco mais tarde, vi as imagens do Festival de Música Popular Brasileira invadir as casas e os corações dos brasileiros, que torciam por suas músicas preferidas, aprendiam as letras e cantavam, todos juntos, como um coro gigantesco ecoando Brasil afora, pra ver a banda passar, tocando coisas de amor.

Pedro Pedreiro esperava o trem, enquanto ninguém chegava do mar. Mas e Cristina, será que ela volta? Talvez fosse no nó de marinheiro de Nicanor que Carolina pensasse, com seus olhos tristes e por isso, não visse o tempo passar por sua janela, que bem poderia estar ao lado de Januária, pra onde o sol apontava.

Um tempo que foi construído tijolo por tijolo em um desenho mágico, esperando o carnaval chegar, mas, ao contrário do velho que deixou a vida sem bagagem, aquele moço de olhos vivos escreve a sua história e a história de seu tempo, cantando a vida, sendo cada música ela própria, uma história.

Um tempo que foi passando e o moço acompanhando, de dentro do bonde da história, porque este, ele nunca perdeu.

Exilado, sabia que voltaria para o seu lugar, para ouvir de novo a Sabiá. De lá, pediu perdão por uma omissão que nunca teve, sempre presente aos mais importantes momentos da luta pela redemocratização do país, denunciando, com graça e poesia, as mazelas de um povo cerceado, amordaçado, que sofria com a tortura, com a miséria, com o atraso.

Perseguido pela censura, dava asas à imaginação e, de uma forma ou de outra, conseguia burlar a pouca “inteligência” reinante à época da ditadura militar.

Político, cronista, amante, trovador, malandro, assim foram divididas as suas canções em uma coleção de cinco CDs, lançados há vários anos. Mas, nem de longe, esta coleção, ou esta classificação, fez jus ao talento, à criatividade, à poesia deste grande artista.

Algumas músicas de Chico são verdadeiras pérolas de simetria, de musicalidade, de conteúdo. O fato de ser filho de um historiador, com certeza contribuiu para que em suas letras, encontremos um pouco da cultura do povo brasileiro.

Chico escreveu valsa, samba, baião, frevo, opereta, música popular brasileira da melhor qualidade. Cantou o amor em "língua de criança", cantou para as irmãs, homenageou a família, os compositores e cantores e cantoras brasileiros, compôs versos que podem ser cantados de frente para trás, dispostos livremente, de acordo com a preferência de quem for cantar. Homenageou o operário da Construção. Homenageou, ao mesmo tempo em que denunciou, como vivem os menores abandonados, o adolescente levado ao crime, o emigrante nordestino e os moradores das ruas. Cantou ao amor eterno. E os sonhos? Alguém terá cantado com mais propriedade? Afinal de contas "sonhos, sonhos são".

Declarou em versos e música o amor à sua mulher e à filha que ia chegar. Cantou as filhas e o neto.

Fez versões, traduziu escreveu e peças musicais.

Misturando poesia e denúncia, amor e saudade, alegria e tristeza, Chico vem dando o seu recado, ao longo de todos esses anos de carreira. E olha que lá se vão cinco décadas. E teve dezenas de parceiros maravilhosos, maestros soberanos, poetinhas e muito mais.

Menestrel, trovador, romântico, contestador, subversivo, qualquer que seja o estilo, qualquer que seja o parceiro, qualquer que seja a fase, a obra de Chico é inigualável.

Mesmo que não lance discos com a frequência, que faça um show quase que por década, nada disso tem importância. Porque Chico não é um artista que precise ficar compondo freneticamente para não perder os fãs.

Chico não é para ser simplesmente ouvido ou cantado. É para ser apreciado e, por que não dizer, degustado?

As letras de Chico Buarque, são como um vinho de safra especial: têm que ser sorvidas com calma, saboreando cada palavra, deixando-se inebriar por elas, descobrindo o prazer que elas proporcionam ao ouvido e à alma... como o “sol que ensolarará a estrada dela, a lua alumiará o mar”, há que se deixar invadir.

Este é Chico: genial, talentoso, único e generoso, tão generoso que distribui com o mundo o seu talento.

Ah! E não é que eu já ia me esquecendo: Acorda amor, é o Julinho da Adelaide.
Mas isso, já uma outra história.

Esse texto, originalmente Gênio Sim Por que não? Foi escrito em 1998, como resposta ao então presidente da República Fernando Henrique Cardoso, ao colocar em dúvida a genialidade de Chico.

Claro que FHC nunca leu o meu artigo. Naquela época não havia blogs e mídias sociais pra gente poder postar o que quisesse.

Onze anos depois, em outubro de 2009,  revisei e atualizei o artigo, troquei o nome, o outro havia perdido o sentido, e já na era dos blogs, postei no meu MISTURA DE LETRAS.

E hoje, dez anos depois, motivada pela alegria do prêmio Camões concedido a Chico pelo conjunto da Obra, lembrei desse artigo e, ao relê-lo, percebi que, antes do júri do prêmio Camões, eu já havia descoberto a genialidade de Chico. Mas eu não concedo prêmio nenhum. Então tudo que podia oferecer com o meu artigo era a minha admiração.

Relendo agora também percebi que deixei de fora o teatrólogo e o escritor, que tem peças incríveis e livros maravilhosos.

Duas décadas depois de escrito o meu artigo continua atual nos comentários e nas constatações. Faltou falar das criações mais recentes como a belíssima Tua Cantiga que, ao lado de Futuros Amantes e As Vitrines, entrou para o rol de minha preferida, com toda a sua poesia e encantamento. Como se fosse possível escolher preferidas entre as músicas de Chico. Mas essas três têm um encantamento especial e uma conexão que não dá para explicar. 
Como não se encantar com o vigia que, invisível, cata as poesias que vão sendo derramadas no chão? Ou com com o amor que ficará milênios no ar e que os sábios tentarão, em vão, decifrar?

Como não se emocionar com alguém tão apaixonado que seria capaz de chegar à sua amada apenas com o sopro do seu perfume?

Em tempos de tanta tristeza, desilusão e desesperança, onde ser brasileiro tem sido um constante passar vergonha, inclusive em âmbito internacional, ao ser agraciado com o prêmio de literatura mais importante da língua portuguesa, Chico Buarque nos deu um presente, o de termos outra vez motivo para nos orgulharmos de ser brasileiros.

E ainda em tempos em que justificam letras ou versões ruins dizendo que a língua portuguesa não é muito melodiosa, a gente sugere um estudo da obra musical de Chico, para as pessoas aprenderem que uma música romântica pode ter a palavra Escafandrista  sem perder a poesia, que um samba pode ter Paralelepípedo  sem perder o ritmo. Pode ter tatuagem no braço, o sangue pode errar de veia, podem até jogar ... pedra na Geny e tantas outras palavras que, com certeza, ninguém jamais ousou colocar em músicas (vide Tatuagem, Não Sonho Mais, entre outras) e, mesmo assim, fazer sentido, manter a harmonia e o ritmo.

Obrigada Francisco Buarque de Hollanda, por traduzir em letras Todos os Sentimentos que, ao longo da vida, invadem o nosso coração, a nossa alma, causando dor, sofrimento, amor e alegrias. Obrigada por nos dar esperança de que amanhã será outro dia, por nos ensinar a, de repente, não sentir a dor que a gente finge que sente e nos convidar para uma fantasia.

Obrigada por nos ensinar a cantar a esperança, a tirar o vestido da gaveta, cheirando a guardado de tanto esperar e a ir pra rua, gritar e despertar a cidade, mesmo nos dias em que a gente se sente como quem partiu o morreu.

Desde 1966 muita coisa aconteceu, no Brasil, no mundo e na vida de cada um, de cada uma, que queria ver a Banda passar.

Hoje uma terceira geração de minha família canta e curte a Banda. A filha embalada ao som de Valsinha, João e Maria também canta para as filhas as músicas da sua infância, que também iluminaram a infância da mãe e hoje, uma avó coruja, que cantava A Banda para elas, desde os primeiros dias de vida.

Incontáveis foram as vezes que já li Chapeuzinho Amarelo para a neta mais velha e me diverti com suas gargalhadas quando imito o lobo tentando assustar a menina que tinha medo de tudo.

Parabéns a você pelo prêmio e a todos nós que temos o privilégio de ouvir a sua música, assistir às suas peças e ler os seus livros.

E como amigo e compadre Frei Betto: "VIVA CHICO CAMÕES".