Texto de Hugo Pereira do Amaral
"Não
se luta contra bandidos utilizando atos de banditismo" (Vladimir Safatle).
A luta
política no Brasil, nestes três primeiros meses de 2016, se desenrola segundo
um roteiro conhecido de sociedades dilaceradas por uma crise em grande medida
artificial e que, às cegas, buscam uma solução pior do que a crise inicial,
pois operada pela violência assassina de "todos contra um".
Na
história contemporânea, o mais horroroso (e demente) exemplo foi dado pela
Alemanha nazista. O Judeu foi designado como a causa de todos os males, não
somente da Alemanha mas de toda
humanidade. A imprensa escrita, a rádio, a editoração de livros e panfletos se
coordenaram para dizimar, pela calúnia metódica e calculada, a comunidade
judaica.
Grandes
manifestações, monitoradas por Hitler e seus comparsas, converteram-se em
rituais periódicos de fusão de indivíduos em uma multidão unânime no seu ódio
rancoroso ao Judeu.
Nessas multidões que se reuniam, periodicamente,
em Nuremberg, e em quase todas cidades da Alemanha, encontravam-se, como em
toda multidão, pessoas boas, porém incapazes de discernimento moral e político
e, por mecânica imitação, atreladas à intoxicação geral.
Era também composta de indivíduos viciados na
prática de desvios socialmente tolerados por serem habituais numa sociedade em
decomposição, tais como caluniar, difamar ou emitir julgamentos definitivos
sobre qualquer um ou qualquer coisa. Mas sempre, é claro, seguros de
expressarem, em nível invejável, as grandes virtudes do povo alemão. Eram,
digamos assim, assassinos virtuais que ainda se desconheciam.
Naturalmente, nessas multidões havia, como
sempre, assassinos de rico e promissor prontuário policial. Todos, coisa
estranha, consideravam-se puros, puríssimos: sujos eram os judeus, puros e
honestos, somente eles. Assim pensava, dizia e gritava essa fina e presunçosa
flor da humanidade. Mais tarde, converteriam-se em aplicados e diligentes
genocidas com a colaboração silenciosa dos demais.
Com
efeito, tudo, absolutamente tudo, era mobilizado para a consecução desse
objetivo ulterior —entrevisto, sussurrado, inconfessável — o extermínio de
todos os judeus.
Havia,
entre os judeus, pessoas de grande valor moral, mas também, a exemplo de
qualquer comunidade feita de pessoas reais e não imaginárias, pessoas
desonestas e corruptas.
Os meios
de comunicação se afiaram na divulgação e no uso distorcido e perverso de
qualquer comportamento condenável de qualquer judeu particular. O caso era
divulgado, comentado, ampliado e, pouco a pouco, considerado desvio
constitutivo de todo e qualquer Judeu. Toda a comunidade foi, num primeiro
momento, criminalizada, para ser num momento posterior, exterminada.
Considerava-se dito espirituoso, "inteligentíssimo", afirmar que
"judeu bom, é judeu morto".
Ouvi,
recentemente, um vizinho desatinado dizer que "petista bom, é petista
morto". Fiquei, num primeiro momento, estarrecido e indignado e, logo em
seguida, lembrando-me do que foi o extermínio dos Judeus e de que estamos na
Semana Santa em que se rememora a paixão e a morte Jesus, vale dizer, seu
linchamento em Jerusalém, comecei a considerar, na seguinte perspectiva, a
tragédia que vivemos nestes dias de março.
Declaro
de imediato que sou católico e se estivesse naquele tempo em Jerusalém teria,
provavelmente, participado do linchamento de Jesus. Pedro, o grande São Pedro,
sucessor designado por Jesus o negou não uma, mas três vezes. A maioria de seus
discípulos desapareceu e a multidão enfurecida que participava desse
assassinato estava convencida de que realizava uma justa e redentora ação. Eram
açulados pelos, digamos assim, meios de comunicação daqueles tempos. Lideranças
religiosas e políticas, os manjados arruaceiros e os maledicentes de sempre,
propagadores de boatos infames.
Não se
tratava de judeus enquanto judeus, mas de uma multidão enlouquecida como
qualquer multidão enfurecida. Os discípulos de Jesus faziam parte dessa
multidão desatinada, e Jesus pediu ao Pai, chegando ao lugar em que seria
crucificado, "perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem".
Com
efeito, o mecanismo que desencadeia a busca assassina de um bode expiatório,
para a resolução de crises numa sociedade, é tão antigo quanto a própria
humanidade. A originalidade da mensagem de Jesus é, entre outras, denunciar o
caráter fundamentalmente mentiroso desse mecanismo. E essa mentira só se
revelou porque um ser radicalmente inocente se imolou para que a inocência de
todos os bodes expiatórios fosse, finalmente, reconhecida.
No
entanto, alguns dirão: "esses petista são culpados". Na verdade,
todos somos culpados e quem não for atire a primeira pedra. E foi, de certa
forma, para contrapor-se à lógica do bode expiatório e da reiteração dos
linchamentos que se constituíram as autoridades judiciárias. É por essa razão
que não há corrupção maior e negação maior do judiciário do que o que ocorre
hoje no Brasil: autoridades judiciárias se transformaram em fomentadoras do
linchamento. Mais precisamente: do linchamento do Presidente Lula. Basta!
Veja-se
René Girard, O Bode Expiatório, Paulus, 2004.
Belo
Horizonte, 18 de março de 2016.
* Hugo Pereira do Amaral possui
graduação em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais(1966),
graduação em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais(1966),
mestrado em Ciência Política pela Universite Catholique de Louvain(1969) e
doutorado incompleto em Ciência Política pela Universidade Católica de Louvain(1974). Foi durante dois anos assistente no
Departamento de Ciência Política da Universidade de Louvain.
Lecionou, por mais de
trinta anos, no Departamento de Filosofia da UFMG. Trabalhou no campo da
filosofia política, da filosofia da linguagem e da hermenêutica filosófica.
Atualmente é Professor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e
Teologia, Professor da Escola do Legislativo, Professor da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais e Membro de corpo editorial da Síntese
(Belo Horizonte).
Nenhum comentário:
Postar um comentário