Cansadas de viverem sozinhas, de vez em quando as letras resolvem se misturar na cabeça de algumas pessoas e, juntas, formam palavras, que formam textos que, dependendo do momento e da imaginação de cada um, tornam-se contos, ensaios, críticas ou até mesmo incríveis historinhas infantis.
Daí, surgem misturas fantásticas para saciar a nossa fome de beleza e nos levar a um mundo encantado que só a nossa imaginação, unida à imaginação de quem escreve pode desvendar.

terça-feira, 26 de abril de 2016

O LINCHAMENTO

 Texto de Hugo Pereira do Amaral 




 "Não se luta contra bandidos utilizando atos de banditismo" (Vladimir Safatle).



 A luta política no Brasil, nestes três primeiros meses de 2016, se desenrola segundo um roteiro conhecido de sociedades dilaceradas por uma crise em grande medida artificial e que, às cegas, buscam uma solução pior do que a crise inicial, pois operada pela violência assassina de "todos contra um".

 Na história contemporânea, o mais horroroso (e demente) exemplo foi dado pela Alemanha nazista. O Judeu foi designado como a causa de todos os males, não somente da Alemanha  mas de toda humanidade. A imprensa escrita, a rádio, a editoração de livros e panfletos se coordenaram para dizimar, pela calúnia metódica e calculada, a comunidade judaica.

 Grandes manifestações, monitoradas por Hitler e seus comparsas, converteram-se em rituais periódicos de fusão de indivíduos em uma multidão unânime no seu ódio rancoroso ao Judeu.

Nessas multidões que se reuniam, periodicamente, em Nuremberg, e em quase todas cidades da Alemanha, encontravam-se, como em toda multidão, pessoas boas, porém incapazes de discernimento moral e político e, por mecânica imitação, atreladas à intoxicação geral.

Era também composta de indivíduos viciados na prática de desvios socialmente tolerados por serem habituais numa sociedade em decomposição, tais como caluniar, difamar ou emitir julgamentos definitivos sobre qualquer um ou qualquer coisa. Mas sempre, é claro, seguros de expressarem, em nível invejável, as grandes virtudes do povo alemão. Eram, digamos assim, assassinos virtuais que ainda se desconheciam.

Naturalmente, nessas multidões havia, como sempre, assassinos de rico e promissor prontuário policial. Todos, coisa estranha, consideravam-se puros, puríssimos: sujos eram os judeus, puros e honestos, somente eles. Assim pensava, dizia e gritava essa fina e presunçosa flor da humanidade. Mais tarde, converteriam-se em aplicados e diligentes genocidas com a colaboração silenciosa dos demais.

 Com efeito, tudo, absolutamente tudo, era mobilizado para a consecução desse objetivo ulterior —entrevisto, sussurrado, inconfessável — o extermínio de todos os judeus.

 Havia, entre os judeus, pessoas de grande valor moral, mas também, a exemplo de qualquer comunidade feita de pessoas reais e não imaginárias, pessoas desonestas e corruptas.

 Os meios de comunicação se afiaram na divulgação e no uso distorcido e perverso de qualquer comportamento condenável de qualquer judeu particular. O caso era divulgado, comentado, ampliado e, pouco a pouco, considerado desvio constitutivo de todo e qualquer Judeu. Toda a comunidade foi, num primeiro momento, criminalizada, para ser num momento posterior, exterminada. Considerava-se dito espirituoso, "inteligentíssimo", afirmar que "judeu bom, é judeu morto".

 Ouvi, recentemente, um vizinho desatinado dizer que "petista bom, é petista morto". Fiquei, num primeiro momento, estarrecido e indignado e, logo em seguida, lembrando-me do que foi o extermínio dos Judeus e de que estamos na Semana Santa em que se rememora a paixão e a morte Jesus, vale dizer, seu linchamento em Jerusalém, comecei a considerar, na seguinte perspectiva, a tragédia que vivemos nestes dias de março.

 Declaro de imediato que sou católico e se estivesse naquele tempo em Jerusalém teria, provavelmente, participado do linchamento de Jesus. Pedro, o grande São Pedro, sucessor designado por Jesus o negou não uma, mas três vezes. A maioria de seus discípulos desapareceu e a multidão enfurecida que participava desse assassinato estava convencida de que realizava uma justa e redentora ação. Eram açulados pelos, digamos assim, meios de comunicação daqueles tempos. Lideranças religiosas e políticas, os manjados arruaceiros e os maledicentes de sempre, propagadores de boatos infames.

 Não se tratava de judeus enquanto judeus, mas de uma multidão enlouquecida como qualquer multidão enfurecida. Os discípulos de Jesus faziam parte dessa multidão desatinada, e Jesus pediu ao Pai, chegando ao lugar em que seria crucificado, "perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem".

 Com efeito, o mecanismo que desencadeia a busca assassina de um bode expiatório, para a resolução de crises numa sociedade, é tão antigo quanto a própria humanidade. A originalidade da mensagem de Jesus é, entre outras, denunciar o caráter fundamentalmente mentiroso desse mecanismo. E essa mentira só se revelou porque um ser radicalmente inocente se imolou para que a inocência de todos os bodes expiatórios fosse, finalmente, reconhecida.

 No entanto, alguns dirão: "esses petista são culpados". Na verdade, todos somos culpados e quem não for atire a primeira pedra. E foi, de certa forma, para contrapor-se à lógica do bode expiatório e da reiteração dos linchamentos que se constituíram as autoridades judiciárias. É por essa razão que não há corrupção maior e negação maior do judiciário do que o que ocorre hoje no Brasil: autoridades judiciárias se transformaram em fomentadoras do linchamento. Mais precisamente: do linchamento do Presidente Lula. Basta!


 Veja-se René Girard, O Bode Expiatório, Paulus, 2004.


 Belo Horizonte, 18 de março de 2016.


* Hugo Pereira do Amaral possui graduação em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais(1966), graduação em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais(1966), mestrado em Ciência Política pela Universite Catholique de Louvain(1969) e doutorado incompleto em Ciência Política  pela Universidade Católica de Louvain(1974).  Foi durante dois anos assistente no Departamento de Ciência Política da Universidade de Louvain.

Lecionou, por mais de trinta anos,  no Departamento de Filosofia da UFMG. Trabalhou no campo da filosofia política, da filosofia da linguagem e da hermenêutica filosófica.


Atualmente é Professor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Professor da Escola do Legislativo, Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Membro de corpo editorial da Síntese (Belo Horizonte). 

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