Ainda muito jovem, o
telegrafista, violinista e poeta Gabriel Elígio Garcia se apaixonou por Luiza Márquez,
mas o romance enfrentou a oposição do pai da moça, coronel Nicolas, que tentou
impedir o casamento enviando a filha ao interior numa viagem de um ano. Para
manter seu amor, Gabriel montou, com a ajuda de amigos telegrafistas, uma rede
de comunicação que alcançava Luiza onde ela estivesse. Essa é a história real
dos pais de Gabriel García Márquez e foi ponto de partida de 'O amor nos tempos
do cólera', que acompanha a paixão do telegrafista, violinista e poeta
Florentino Ariza por Fermina Daza. Um amor que resistiu ao casamento de Fermina
com outro e que esperou por um final feliz por 51 anos.
Mas, o amor sobre o qual
pretendo falar aqui, não é o mesmo dos pais de Gabo ou de suas personagens no
livro. Também a cólera é outra, é a raiva, a ira, que tem alimentado o ódio que
proliferou no país.
Quero falar do amor
fraterno, que une não apenas duas pessoas romanticamente, mas que pode unir
tantas quantas puder alcançar, em uma relação de amizade e que, como o amor do
livro, poderia durar cinquenta, sessenta anos e até mesmo seguir mais e mais em
frente, deixando suas sementes milênios no ar.
Quero falar desse amor que
está sendo vencido pela cólera. Uma cólera que não é enfrentada, contornada, sequer
desafiada e que, ao contrário, está ganhando e enfraquecendo sentimentos e
amizades.
Sim, vivemos amores e
desamores em tempos de cólera.
E, nesses tempos, em que
telegramas foram substituídos por whatsapp e telegram, cartas por e-mails e
álbuns de fotos e conversas entre amigos e familiares foram substituídos pelo
Facebook, os amores deveriam estar se reforçando, se alimentado e se
fortalecendo.
Mas, infelizmente, as
redes sociais, como tudo nessa vida, têm dois lados. Um lado que aproxima e
outro, cruel, que afasta.
Protegidos pela
invisibilidade, pela incapacidade das outras pessoas poderem lhes olhar olho no
olho, as pessoas tomam ar e digitam tudo o que, pessoalmente, não teriam
coragem de dizer, seja de bom, seja de ruim. E os ataques vão acontecendo,
cotidianamente, ferindo sentimentos, matando amizades, por vezes espalhando
boatos que prejudicam a moral ou a vida profissional dos outros.
Perfis falsos são criados
só para xingar, denegrir, ofender, destratar, humilhar. Postagens são criadas
com o único intuito de magoar. E, enquanto isso, os alicerces que uniam amigos
e famílias, vão se desintegrando.
E, o tempo passa tão
rápido que, um dia, de repente, a gente se lembra daquele amigo, daquela amiga,
que já não vemos há tempo, que sequer temos falado nas redes e percebe, com
muita tristeza, que o amor, a amizade, não está resistindo aos tempos de
cólera.
Se antes o que unia as
pessoas eram os sentimentos, hoje eles não são mais suficientes para que
amizades perdurem. Hoje, o fator dominante para manter as amizades é a opção
política. Amigos inseparáveis antigamente, hoje mal se falam. Famílias excluem
membros dos chats por expressarem opinião diferente da maioria do grupo. Até
mesmo a cor da roupa que a pessoa usa pode provocar xingamentos e humilhações
na rua.
E daí fico me perguntando
se os pais de Garbo vivessem hoje a sua história, aqui no Brasil e cada um
tivesse uma opinião política diferente, o amor que resistiu às proibições, à
distância e ao casamento com outras pessoas, resistiria à divergência política?
Esperaria anos e anos no ar?
Chico inicia sua belíssima música Futuros Amantes
assim: “Não se afobe não que nada é pra já, o amor não tem pressa, ele pode
esperar, em silencio, no fundo do armário, na posta restante, milênios, milênios
no ar” e termina: “Não se afobe, não, Que nada é pra já, Amores serão sempre
amáveis, Futuros amantes, quiçá Se amarão sem saber, Com o amor que eu um dia Deixei
pra você”.
E daí, ouvindo a música fiquei pensando se, com tanto
ódio, tanta amargura, solta no ar, como se amarão os futuros amantes? Acredito
que temos a responsabilidade de deixar muito amor no ar para que ele se espalhe
e nunca se acabe. Para que ele permaneça milênios no ar.
Por isso quero meus amigos de volta, quero poder me
encontrar com todos os amigos e amigas que tanto quero bem, sem que os lados
opostos na política coloquem um paredão entre nós. Quero ouvir o telefone tocar
e falar com amigos que não me ligam há muito tempo. Quero poder me encontrar
com as pessoas queridas como nos velhos tempos, antes do tempo da falta de amor
em tempos de cólera.
Mais tolerância e menos
irritação! Mais solidariedade e menos amargura! Mais carinho e menos guerras!
Mais amor e menos cólera.
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