Pois é, essa história do juiz que se ofendeu quando
descobriu que não era Deus, dirigindo com carteira vencida e carro sem
emplacamento, me lembrou os nada saudosos anos de chumbo, quando “carteirar” era
a coisa mais comum. A frase, esnobe e pretenciosa “sabe com quem está falando”
era usada com frequência, para desviar o foco do da coisa errada que estava
fazendo e, daí, intimidar quem pegou o flagra.
Como os militares estavam infiltrados em todos os lugares,
sempre tinha um para tirar o filho, o irmão, o amigo, o vizinho, do sufoco. Daí, ou o
próprio miliar usava sua carteira para se safar ou livrar alguém ou então o
alguém recorria a tal frase para mostrar que ou era alguma autoridade ou era
próximo de quem era.
A agente em questão estava cumprindo o seu dever ao autuar
uma pessoa que descumpria a lei. E, estava respeitando o artigo 5º da Constituição
Brasileira que diz que “todos são iguais perante a lei”. E, por cumprir o seu
dever vai ter que pagar R$ 5.000,00 ao juiz que estava descumprindo a lei de trânsito.
Mas, enfim, corporativismo é o que mais vemos neste País, em detrimento do que
é certo.
Bem, voltando aos anos de chumbo, lembrei de uma história
que aconteceu comigo e minha irmã. Nós estávamos voltando de um enterro. Eu,
ainda um tanto abalada, cometi um atropelamento. Aliás, o primeiro e único
atropelamento em toda a minha vida.
SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO? |
Atropelei um balde. Isso mesmo: um balde. Como
não sabia o que eu havia atropelado, parei imediatamente o carro e ia abrindo a
porta para ver do que se tratava quando surgiu, ao meu lado, um soldado,
balançando os braços e gritando, o que só depois consegui entender: “você
destruiu uma propriedade do exército brasileiro”. A princípio me assustei, achando que havia
atropelado um companheiro dele. Só quando vi o balde, meio amassado, nas mãos
deles, e ele apontando e gritando, foi que me dei conta de quem ou o quê eu
havia atropelado.
Assustada com a fúria do rapaz, fechei a porta do carro e
tentei ir embora. Afinal, com toda certeza, o alvo do meu atropelamento não ia precisar de socorro. E, imagino que o Detran não iria se deslocar para fazer a ocorrência, dada a identidade da vítima. Mas ele ficou grudado à janela, gritando que eu ia ter que
pagar e outras coisas que já não me lembro.
Olhando ao redor, vendo esponja, sabão etc, entendi que o
soldado estava lavando um carro. E, o tal do balde devia estar afastado do
carro e, dada a sua pouca estatura, não me foi possível evitar o "pior".
Era um daqueles baldes de latão que se usava muito. Estava amassado, mas ainda servia. Quando vi que ela não ia largar
a janela do carro e que não parava de gritar, eu respirei fundo, olhei bem nos
olhos dele e “carteirei”. Pedi para ele fazer silêncio, bem abusada. Ele,
surpreso, calou a boca. Então peguei um papel e uma caneta e solicitei o nome
dele, a patente e o local onde estava
lotado. Ainda surpreso ele perguntou pra que. E eu falei, na maior
tranquilidade, que era para fazer queixa ao coronel fulano de tal, de tal
quartel, que, por acaso era o meu pai. Falei que meu pai gostaria muito de saber
como eu havia sido tratada por um
provável subalterno dele.
E aí o feitiço virou contra o feiticeiro. Ele ficou pálido,
começou a gaguejar, pediu desculpas, disse que não tinha sido nada, que o balde
ainda servia, que eu podia ir embora, que estava tudo bem. Confesso que cheguei
a ficar com um pouco de pena dele. Diante do pedido de desculpas, falei que ia
deixar pra lá. Mas que ele tomasse cuidado. Da próxima vez meu pai iria saber. E
não iria ficar feliz.
Liguei o carro e saí dali mais que depressa, antes que o
nervosinho descobrisse que o tal coronel não existia. Ainda bem que naquela
época não tinha celular.
Outro abuso de poder, frequente, na verdade, semanal,
acontecia em uma rua na lateral de um quartel da polícia. Toda sexta-feira, a
partir das sete da manhã, havia uma formação de oficiais na frente de um edifício, no final da rua. Tinha
também uma banda, que tocava por lá, não lembro se fazia parte da formação ou se era ensaio. E isso durava pelo menos uma hora. Bem, se fosse
apenas o incômodolho do baru, já seria um absurdo. Mas, o problema maior é que a rua é sem
saída e a formação dos oficiais ficava na frente da entrada e saída da garagem.
Ou seja, era como a música de Luiz Gonzaga: ”Quem está fora não entra, quem
está dentro não sai”.
Então, os moradores do prédio tinham que se organizar para
sair de casa antes das sete, se quisessem chegar no horário em seus
compromissos. Isso durou muito e muito
tempo. Qualquer compromisso que envolvesse sair ou entrar no prédio de carro, às
sextas-feiras, tinha que ser antes das sete e depois das oito.
E ai de quem fosse fazer alguma reclamação sobre o assunto. Era capaz de sair de lá fichado. Ou, então, ser preso por desacato. Vá saber.
Para quem não lembra ou não viveu no famigerado tempo da ditadura, é bom saber que, o abuso de poder, a tal da “carteirada”
era o seu lado mais ameno, porém, não menos invasivo e absurdo.
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