por Rejane Menezes
Não sei se estarrecida seria a
palavra para definir como me senti no domingo, 05 de novembro, ao ver as
notícias sobre o comportamento de algumas pessoas nas portas de locais de
realização do exame do ENEM.
Seria só eu ou muita gente
também ficou horrorizada e indignada com o comportamento de pessoas que, em diversas
cidades do país, foram se divertir com a agonia de quem se atrasou e não
conseguiu entrar?
Confesso que minha cabeça deu
um nó ao ler que as pessoas saíram de suas casas, em uma manhã de domingo, para
fazer piquenique, tomar cerveja, se divertir, à custa de quem não conseguiu
chegar a tempo para prestar o exame. Que país é essa minha gente, onde o
sofrimento de uns é motivo de badalação para outros?
É com muita preocupação que
venho acompanhando as notícias do retrocesso do Brasil em todas as áreas:
social, ambiental, econômica, religiosa e humana, com a exacerbação dos
preconceitos e da intolerância. A divisão de classes está cada vez mais
acentuada e acirrada. A homofobia vem fazendo vítimas de violência, inclusive
física, assim como a intolerância religiosa, com o fanatismo e o fundamentalismo
se espalhando e indo na contramão do que qualquer religião prega: a justiça.
E agora, do nada, sem uma razão
sequer, nos deparamos com camarotes distribuindo cerveja para os retardatários,
com corredores de pessoas gritando e até mesmo atrapalhando quem chega
desesperado para conseguir encontrar o portão aberto.
O que é isso minha gente? Será
que as pessoas não conseguem mais racionar como animais racionais? A
racionalidade, a única coisa que nos diferencia dos outros animais, estaria
atrofiando? Será que o ciclo de evolução se fechou e agora estamos no processo
inverso?
Fico me perguntando o que leva
um grupo de jovens a “assistir” ao atraso dos candidatos ao ENEM, tomando
cerveja gelada e ainda a comentar que “esse ano foi fraco. Mas valeu o rolê”.
Se esses jovens são uma
representação do futuro do Brasil, sinto informar que não haverá futuro.
Sempre fui uma pessoa otimista.
Sempre me orgulhei de ser brasileira e, sobretudo, de ser nordestina. Hoje me
resta apenas o orgulho de ser nordestina, porque em ser brasileira, só sinto
vergonha.
Não consigo entender a diversão
em ver pessoas correndo para conseguir acessar os portões e fazer uma prova
cujo resultado poderá mudar totalmente sua vida.
Quantos sonhos foram destruídos
ontem ou, pelo menos, adiados, para os que encontraram os portões dos locais de
prova fechados? Quantos planos foram por água abaixo, diante da impossibilidade
de tentar acesso ás universidades públicas?
Quantas daquelas pessoas que
chegaram atrasadas já não tentaram entrar na faculdade mais de uma vez?
Para muitos dos que se
divertiam com a desgraça dos outros, entrar na faculdade não foi ou não será um
problema. Afinal, se não entrar nas públicas, seus pais podem pagar. Mas e quem
não pode pagar por uma universidade privada? Não vivemos mais em tempos em que
o financiamento estudantil era uma realidade plausível e que ajudou a muitos
estudantes pobres a conquistarem seus diplomas. Isso é passado. Aos menos
abastados a única opção é a universidade pública. E perder o exame do ENEM não
tem nada de engraçado.
O exame do ENEM não é um
espetáculo, um show, uma apresentação, que deva mobilizar público, seja para
torcer, como alguns disseram estar fazendo, seja para assistir ou, pior ainda,
atrapalhar, como pudemos ver em matérias na mídia.
Os motivos de quem chegou
atrasado são inúmeros e cada um tem o seu. E, em nenhum caso, com certeza, diz
respeito a quem estava aglomerado nas imediações dos locais de prova. E é aí
que a realidade atual do país mais me assusta: a intromissão na vida pessoal de
estranhos está se tornando uma constante, na verdade, eu diria, está deixando
de ser um desvio de conduta, antes criticado, para se tornar uma prática,
aplaudida e noticiada, por algumas mídias, com bom humor e descontração.
Não minha gente, nunca essas
práticas de invasão na vida dos outros pode ser encarada como uma notícia leve,
engraçada ou bem humorada.
Bater em uma mãe e uma filha ou
em dois irmãos, por achar que são homossexuais, tem que ser motivo de
indignação e de combate. É uma violência e um desrespeito à individualidade de
cada ser humano. Se uma pessoa é adepta de uma religião de matriz Afro, ela tem
que ser respeitada por pessoas de outras religiões, porque respeito e
acolhimento é um princípio básico de qualquer religião.
Estão nos tirando todos os
direitos:à educação, à saúde, à aposentadoria, à moradia, trabalhistas, ambientais,
de opção sexual e religiosa. Estão destruindo a nossa dignidade. E, ao vermos
todo esse comportamento absurdo em relação aos que perderam a hora do exame do
ENEM, temos a sensação de que as pessoas estavam comemorando o infortúnio,
trazendo para fora dos muros da prova o clima de competição e animosidade que
acreditam que deva existir entre os competidores.
Cada um que chegar atrasado é
um competidor a menos e, por consequência, uma chance a mais para quem está
fazendo a prova. Se for esse o raciocínio, se para quem chegou a tempo, quanto
menos pessoas fizerem o exame, melhores as chances, mais se confirma o meu
prognóstico de que não há um futuro para esse país.
Por isso é preciso despertar
desse torpor, desse caminhar automático, sem olhar para os lados e nem para
trás. É preciso despertar desse pesadelo que estamos vivendo nos últimos tempos
e questionarmos as nossas atitudes, as nossas supostas convicções.
Não é divertido tomar cerveja enquanto
as pessoas estão desesperadas porque perderam a hora do exame. Isso é sintoma
de uma doença nacional grave, muito
grave: a desesperança. É a sinalização de uma desilusão profunda, de um
sentimento de não ter por que lutar.
Por isso, depois de vermos uma
parte de nossa população ir às ruas e ter uma atitude como essa, de transformar
a desgraça alheia em uma fonte de diversão e laser, acredito que, como povo,
chegamos ao fundo do poço. E, a partir de agora, qual será a fonte de diversão?
Sentarmos em uma de nossas magníficas e caríssimas arenas e assistirmos,
extasiados aos leões devorarem quem não consegue pagar o aluguel? Ou batermos
palmas e incentivarmos as lutas corporais entre candidatos a uma vaga de emprego?
É isso mesmo produção? É isso
que queremos para o futuro de nossos descendentes? Selvageria e barbárie?
Violência como diversão?
Depois do que ocorreu nesse
domingo, 05 de novembro, penso que temos
o dever cívico de nos desacomodarmos e começarmos a tecer as cordas que nos
ajudarão a subir pelas paredes desse poço, enquanto ainda estamos no fundo.
Se não fizermos nada, haverá
grandes possibilidades de, até o ano que vem, no próximo exame do ENEM não
estarmos mais no fundo poço e sim de estarmos caindo em um poço sem fundo.
A escolha é nossa. Ainda há
tempo de subirmos em busca da nossa dignidade roubada, enquanto ela ainda não
está totalmente perdida.
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