A COR DO TERROR |
Desde pequena que tenho uma cor
preferida. Uma daquelas coisas que criança escolhe, descobre, sei lá, se apega
e não se encontra explicação. Já nasci apaixonada pela cor vermelha. E, com
certeza, quando nasci, não tinha opção política para associar cor à ideologia,
por exemplo.
Eu sempre escolhia
tudo vermelho, das minhas roupas às roupas das bonecas, tinha que ter vermelho.
Não sei hoje, mas, quando estava noiva e fazendo enxoval, a gente escolhia a
cor das roupas de cama e banho, para o dia do casamento. E, é claro que os
lençóis e toalhas foram vermelhos. Os móveis da cozinha também, fogão,
geladeira, mesa, armários, liquidificador, batedeira, tudo vermelho. No final
dos anos setenta, as cores dos eletrodomésticos e armários eram bem variadas,
talvez para se contrapor ao branco que
reinava sozinho há décadas. Essa moda durou alguns anos. Não sei quando,
exatamente, o branco voltou e as cozinhas coloridas passaram a ser “cafonas”.
Hoje, até chamar “cafona” é cafona. Já foi bokomoko, em algum momento.
Enfim, contei isso para dar a dimensão
do vermelho em minha vida. Isso me veio à memória porque, ontem, li uma matéria
falando sobre cinco agressões a mães, com bebês de colo, por causa da cor
vermelha. Fiquei tão impressionada com
os depoimentos que não penso em outra coisa desde então. Lembrei que, quando
minha primeira filha nasceu, a cor de tudo que ela usou no primeiro dia, foi, é
claro, vermelho. E havia muitas peças no enxoval dela na cor vermelha. Então,
se fosse hoje, eu e ela correríamos o risco de sermos agredidas na rua.
Fiquei me perguntando se isso
está mesmo acontecendo. Não teria sido notícia falsa? Não consigo imaginar
cinco mães inventarem essas histórias. Houve casos em que a mãe estava com alguma
roupa vermelha. Mas, houve dois casos ainda mais inacreditáveis: em um, o bebê
estava com uma roupinha vermelha da Minnie e, em outra, a mãe usava um Wrap
dryfit, também conhecido como “canguru” , para carregar o bebê. Teve agressão
na rua, em
restaurante e até no trânsito ( conferir matéria: http://outraspalavras.net/alceucastilho/2016/03/21/ja-sao-tres-os-casos-de-maes-com-bebe-agredidas-por-uso-de-vermelho/) *
O ódio que toma conta de uma
parte dos brasileiros está se tornando cada vez mais perigoso. Agressões como
essas acima a pessoas que não apoiam o impeachment têm acontecido a toda hora.
Algumas se tornam conhecidas por serem com gente famosa, como a que sofreu
Chico Buarque, ao sair de um restaurante. Mas, agressão a crianças, é algo muito,
muito grave e assustador. Em um dos casos jogaram pedra, à altura da cabeça da
criança. Em outro ameaçaram atirar na mãe e no bebê, por causa da cor vermelha.
Minha gente, está na hora das
pessoas pararem e revisarem o seu comportamento absurdo, agressivo e criminoso.
Ainda vivemos em uma democracia e, pelo que eu saiba, não existe proibição de
uso de qualquer cor, em nenhuma parte da Constituição Brasileira. Se bem que,
citar a constituição nem vale mais a pena, já que, também ela, vem sendo
desrespeitada ultimamente.
PAREM com tanto ódio. PAREM com
tanto desrespeito. Nem usar vermelho significa que a pessoa apoia o governo, o
PT ou Lula e, muito menos, apoiá-los é crime. Crime é agredir alguém pela cor
que usa, pelas causas que apoia, pela opção de gênero, por estar do lado dos
mais pobres, pela religião que abraçou.
CRIME é impedir, pela ameaça e
pela agressividade, que as pessoas expressem as suas opções. CRIME é fechar os
olhos à miséria, à pobreza, à injustiça social. CRIME é impedir que as pessoas
mais pobres também tenham os mesmos direitos que os mais abastados.
Se o ódio que vivenciamos hoje
fosse na época em que casei, provavelmente eu não teria comprado os móveis e
eletrodomésticos da cozinha na cor vermelha, porque as lojas já teriam sido
atacadas por venderem produtos nessa cor e, provavelmente, proibidas de repor o
estoque. E, se caso houvesse comprado antes da onda de terror se espalhar,
minha casa seria apedrejada por ter tanto vermelho na cozinha. Talvez pichassem
o muro com “vai pra Cuba”, “Petralha” e coisas afins. Mas não, eram outros
tempos. Tempos em que se o presidente da República fosse chamado de “feio”,
provavelmente algumas dezenas de suspeitos seriam presos, torturados e, o “culpado”,
não voltaria para casa. Eram tempos onde o vermelho era derramado por muitos,
nas salas de tortura, para que, no futuro, a presidenta da República fosse
chamada de “quenga” e, as pessoas que carregavam a faixa onde isso estava
escrito pudessem voltar para casa, tranquilamente, sem serem incomodadas.
Eram tempos onde até pensar era
perigoso. Tudo era proibido, tudo era subversivo, tudo era terrorismo, se fosse
contra o governo. Ao contrário de hoje, onde, ser a favor do governo é que é
proibido.
O sangue que escorreu das veias
esgotadas de tantos maus tratos, pintou as cores da democracia neste País. Os
corpos que nunca foram encontrados forjou a liberdade de expressão e o direito
de ser contra o governo e continuar a andar e a se expressar sem perigo de desaparecer.
O jogo se inverteu. Perigoso hoje
é apoiar o governo. Não é possível que tanto sofrimento, tanta dor, tanto
sangue derramado tenha garantido apenas três décadas de democracia. Não é
possível que a própria democracia seja a responsável por sua morte. NÃO! Democracia
não é para isso. Democracia é para saber que o meu limite termina onde começa o
do outro. Democracia é para respeitar as diferenças, em todos os sentidos.
Democracia é para governar para todos, para todas, não importa classe social,
cor, religião ou gênero. Democracia é para valorizar a vida. A VIDA DE TODOS. E
não penas de quem tem dinheiro ou poder.
Da próxima vez que você vir
alguém, seja adulto ou criança, com alguma roupa vermelha, lembre-se você deve
a essa cor, a cor do sangue, o direito de estar nas ruas gritando e protestando,
chamando a quem quer de ladrão e voltando pra casa vivo.
Mais respeito minha gente.
Basta isso. Mais respeito...
* Sobre o autor do blog Alceu Luís Castilho
Alceu Luís Castilho é jornalista desde 1994, formado pela Universidade de São Paulo (USP). Entre 1994 e 2001, trabalhou no jornal O Estado de S. Paulo. Em 1999, venceu o prêmio Fiat Allis de Jornalismo Econômico. Foi fundador e editor-executivo da Agência Repórter Social, pela qual obteve o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, o Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo e o Prêmio Andifes. É também Jornalista Amigo da Criança, título oferecido pela Agência de Notícias de Direitos da Infância (Andi) em 2007.
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