"A
defesa do nascituro inocente, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada,
porque é ali que está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e
exige o amor de cada pessoa além de seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada
é a vida dos pobres que já nasceram, que estão lutando na pobreza, no abandono,
no adiamento, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta nos doestes e
idosos privados de atenção, as novas formas de escravidão, e em toda forma de
exclusão". Papa Francisco - Gaudete et Exsultate.
Está no ar uma discussão muito
séria e acalorada: a descriminalização ou não do aborto. Uma questão que é de
saúde pública virou uma bandeira religiosa, uma verdadeira obsessão, transformada em uma defesa fundamentalista,
sem espaço para uma compreensão maior do contexto onde a maioria dos abortos
são realizados e o grande número de óbitos por parte das mulheres que se
submetem à interrupção da gravidez.
Recentemente ao colocar minha
opinião em um chat, uma resposta me fez pensar no quanto as pessoas estão longe
de entender as causas e consequências do aborto.
As Igrejas cristãs se arvoram de
defensoras da vida, se unem contra a descriminalização do aborto, alegando
estar defendendo a vida. Só que essas parcela das Igrejas vão às ruas com
bandeiras, faixas e camisas sob a alegação de dizer sim à vida. Mas o meu
questionamento sempre foi: ser contra descriminalização o aborto é a mesma
coisa que defender a vida?
Eu não sou a favor de aborto.
Nunca fiz e nem faria. Mas o que está sendo discutido hoje não tem nada a ver
com fazer ou não fazer aborto. Tem a ver com penalizar ou não as mulheres que
interrompem a gravidez, condenando-as sem procurar ouvir suas histórias, sem
entender o seu contexto.
Quando a Igreja Católica leva
multidões às ruas para dizer Sim à Vida, não deveria dizer sim á vida em toda a
sua plenitude e não apenas à vida dos fetos?
Quando fazem protestos contra a
legalização do aborto, não deveriam também fazer protestos contra à miséria, à
pobreza, à fome, à educação precária e à falta de um lar?
Já imaginaram que se a Igreja não proibisse os
contraceptivos não haveria tantos abortos e tantas mulheres morrendo em
consequência das condições precárias às quais recorrem para interromper uma
gravidez que não têm nenhuma condição de continuar?
E se as pastorais que chegam até
as comunidades conversassem com as mulheres sobre o uso de contraceptivos? Quem
sabe até distribuíssem ou encaminhassem para os postos de saúde?
Crianças geradas em meio à
miséria e à pobreza, já estão condenadas desde os primeiros minutos da
concepção a não ter nenhum futuro. Podem até escapar do aborto, mas não sobreviverão
à fome, à violência doméstica e das ruas ou às drogas.
Se a Igreja Católica quer
realmente dizer sim à vida, primeiro acabe com a proibição dos contraceptivos,
uma proibição tão sem sentido quanto querer que mulheres pobres, muitas vezes
estupradas pelos próprios companheiros, evitem gravidez usando a tal da
tabela.
Conseguimos penar em algo do tipo
a mulher está em seu casebre, chega o companheiro bêbado, querendo transar e
daí ela olha na tabela e diz que não pode porque é dia fértil? Isso é surreal e
insano. Entretanto se essa mulher tomasse pílula anticoncepcional, por exemplo,
ela não engravidaria e não precisaria recorrer a um aborto clandestino porque
não tem mais como ter mais um filho e vê-lo morrer de fome.
Vamos dizer Sim à Vida, exigindo
o fim da exclusão e da injustiça social. Isso é que devia ser ilegal e punido.
A fome é que é ilegal. Crianças nas ruas, sem escola, sem lazer. Isso é que é
ilegal e imoral. Violência doméstica e abuso sexual em crianças, isso é que é
crime.
E tem um detalhe: se acontecer a
legalização do aborto, ninguém é obrigada a fazer só porque é permitido. A
legalização do aborto vai garantir a quem quiser interromper a gravides
condições de higiene e saúde, preservando assim a vida das mulheres.
Quando vejo essa defesa acalorada
por parte de membros da Igreja contra a legalização do aborto, sob a alegação
de que é crime, uma pergunta me vem à cabeça: queimar pessoas na fogueira pela
inquisição não era crime? E a Igreja Católica condenava e queimava.
E a pena de morte em alguns
países? Não é crime também? Ou porque é o Estado que mata deixa de ser crime?
Crime é o fato de que apenas
algumas crianças terão futuro. Crime é se pagar fortunas em escolas
particulares para umas crianças brincarem, enquanto um número enorme de
crianças nem a escola pública frequentam. Crime é algumas crianças irem aos
famosos parques no exterior mais de uma vez por ano e outras, morando em Recife
nunca terem sequer visto o mar. Crime é umas crianças terem brinquedos que
custam muitos mis reais e outras não terem sequer uma lata velha cheia de areia
para puxar e fingirem que é um carrinho.
Ao expor meu pensamento no chat
que falei lá em cima, uma pessoa disse que não havia a menor necessidade de
descrever a minha aversão à Igreja.
Eu não tenho aversão à Igreja.
Sou até conservadora quando o assunto é religião. Sou conservadora porque, como
um amigo escreveu uma vez, sonho com a igreja dos primórdios, onde as
comunidades celebravam nas casas, todos se conheciam, se respeitavam e se
cuidavam. Não gosto é quando os membros da Igreja colocam a instituição acima
do Evangelho, quando coloca as leis feitas pelos homens, como o Direito
Canônico, acima do que está escrito no Evangelho, negando, muitas vezes, o
apelo do Cristo.
Vamos então dizer Sim à Vida, mas
à vida em abundância como falou o mestre a quem seguimos e que foi condenado à
cruz exatamente porque exigia que os conceitos da igreja daquela época fossem
revistos e que todos e todas fossem incluídos.
Da próxima vez que quiser dizer
Sim à Vida, faça opção preferencial pelos pobres, entenda a realidade deles e
lute para que a justiça social aconteça.
A minha Igreja é a Igreja de
Jesus Cristo, de São Francisco de Assis, de Dom Helder e do papa Francisco. E a
sua, qual é?
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